Vou
aqui, então, relatar aos amigos as providências, condutas e jeitinhos para
adiar o mais que puder a morte, através da explicação de seus diversos torneios
vocabulares, a fim de que possa orientá-los em suas vidas. Minha família tem o
péssimo hábito de ser longeva.
Vamos
a eles.
ABOTOAR
O PALETÓ: Não tenho mais paletós. Minto. Até tenho, para cerimônias formais,
mas não lhes dou confiança. Aliás vou doá-los, assim que termine este texto. Se
não conseguir me desvencilhar deles tão logo, vou arrancar-lhes os botões, a
fim de não correr risco de abotoá-los inadvertidamente.
ESPICHAR
AS CANELAS: Sou renitente! Não espicho! Tenho o cuidado de sempre manter meus
joelhos dobrados, até mesmo quando durmo, no intuito de prevenir qualquer
incidente grave.
COMER
CAPIM PELA RAIZ: Raiz? Não tenho comido nada. Nem aipim, beterraba, batata,
inhame, cenoura. Minha glicose anda saliente, e estou me abstendo de consumir
coisas subterrâneas. Todas, invariavelmente, viram açúcar.
VESTIR
O PALETÓ DE MADEIRA: Se estou abrindo mão dos paletós de tecido, muito mais
confortáveis, por que iria usar paletó de madeira? Seria, inclusive, pouco
ecológico. E, também, porque o caimento não fica bem. A madeira não se conforma
à minha anatomia um tanto irregular, na parte situada nas imediações do ventre.
Se é que me entendem.
PASSAR
DESTA PARA MELHOR: Não comprei nenhuma passagem para melhor. Portanto não vou
passar para lugar nenhum. Se houver vale transporte para isso, pode ser que eu
estude a possibilidade, num remoto futuro. Caso contrário, fico por aqui mesmo:
nesta!
VIRAR
PRESUNTO: Não fui criado com bolotas, nem nasci em áreas demarcadas propícias,
o famoso terroir. A não ser que Carabuçu seja considerado um terroir caboclo!
Assim minha carne e minha gordura não se prestam a virar um bom presunto de
Chaves, Barroso, Barrancos, Vinhais, Pata Negra, de Parma, dentre outros menos
conhecidos. Nem mesmo acredito que sirvam para mortandela.
TER
AS HORAS CONTADAS: Não uso relógio desde a juventude. Assim que terminei o
curso primário, no saudoso Grupo Escolar Marcílio Dias, em Carabuçu, ganhei um
relógio de presente do prefeito do município. Foi o único. Nem sei onde anda
mais. Por isso, não conto as horas. Deixo para os mais preocupados com o tempo.
IR PARA
A CIDADE DOS PÉS JUNTOS: Como no caso de partir desta para melhor, não comprei
passagem. E, ademais, não encontrei tal cidade no planisfério. Nem mesmo o GPS,
o Viber ou o Google Maps conseguiram localizá-la. Estou abortando a viagem
sempre.
ENTRAR
NO SONO ETERNO: Não consigo dormir muito, embora goste bastante. Um pouquinho
só, umas oito horas, me bastam a cada dia. Esse negócio de sono eterno não faz
minha cabeça. Prefiro acordar sempre no dia seguinte e beber um generoso e
fumegante gole de café amargo. Assim também vale para o tal descanso
eterno. Como diz o vulgo, prefiro viver cansado, embora aposentado em tempo
integral.
ESTAR
COM O PÉ NA COVA: Não sou couve, alface ou rúcula, para enfiar o pé em cova
nenhuma. Talvez um pouco hidropônico. Sou desenraizado. Plano acima da linha do
chão por dois centímetros de sola de sapato ou de sandálias de dedo, que me hão
de evitar enfiar o pé na cova. Estou fora!
BATER
AS BOTAS: Desde os dezoito anos, época em que servi o glorioso exército
nacional, não uso botas. Nem nunca comprei. Já há bom tempo só tenho mocassins,
que não servem para bater em nada, nem em ninguém. E, quando entro na areia da
praia para fotografar, lá mesmo bato os mocassins na beira do calçadão, para me
livrar dos grãozinhos que penetram sem convite.
DAR
COM OS COSTADOS NA CERCA: Acerca, sem trocadilho, desta expressão, já me
expressei aqui em outra postagem (Clique aqui para ver.). Nem chego perto de
cerca, a fim de evitar, se falsear a passada, que eu possa esbarrar em qualquer
tipo de cerca, de madeira, bambu, cerca-pinto, arame farpado, ou mesmo e
sobretudo elétrica. Minhas costas estão incólumes até hoje.
DAR
O ÚLTIMO SUSPIRO: Esta expressão é dúbia. Suspiro é também o nome de um doce
muito apreciado, feito de clara de ovo, açúcar e tenras farpelas de casca de
limão, que se desmancha na boca milagrosamente, mas que também eleva a taxa de
glicose aos píncaros. Quem compra um pacote de suspiros dá qualquer um deles,
menos o último, que é justamente o que encerra, enfeixa, potencializa seu
derradeiro paladar. Ninguém dá o último suspiro. Eu, por questões já ditas
acima, nem compro o pacote. Ainda mais dar o último suspiro! Quanto ao suspiro
propriamente dito, esse que movimenta o ar que entra e sai dos pulmões, quero
informar que vai bem obrigado. Meu fole anatômico tem funcionado muito bem. Os
pulmões continuam livres e desimpedidos. Espero, assim, dar o último suspiro só
depois de morto.
Por
hoje é isso! Até a próxima encarnação!
Gustave Doré (1832-1883), Caronte (ilustração para a Divina Comédia; em worldofdante.org). |
Está de morrer a rir!...
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