(Para
o amigo Marcelino Medeiros, dono da história.)
A coisa se dá mais ou menos
assim.
Você viveu a infância toda
como um bicho solto nas ruas da vila, algumas de paralelepípedo, outras de chão
batido. Fazia corriola com o irmão e os amigos. Reinava absoluto num tempo em
que até as chuvas torrenciais dos verões eram matéria lúdica. Correu pelos
pastos, varou cercas de arame farpado atrás de frutas em quintais alheios,
soltou pipa, brincou de siliprina e pique-esconde, andou em lombo de burro e
levou corrida de cachorro bravo. Mas aí tem de sair de lá. Tem de acompanhar os
pais, que procuram melhor sustento para a família. E não lhe resta nada, a não
ser ir quietinho, chorando por dentro, a fim de não levar um pito daqueles,
quando não um cascudo, para deixar de ser banana.
E, com o passar dos anos, cresce,
vira adolescente, namora, mas ainda lá por dentro, lá no imo, como dizem os
textos românticos, aquele jeito de mato permanece, recalcitrante que só ele, a
manter acesos certos desejos, certos sonhos.
Um deles, por exemplo, é ter
um cavalo.
Resolve, então, passados uns
anos, a trocar a velha bicicleta de quadro duplo, pneu balão, campainha
descascada, por um equino do vizinho do fim da rua. Você está em Nova Iguaçu e
tem dezesseis anos, nesta altura. Ali você passou a morar com seus pais e
irmãos. O quintal espaçoso, com algumas árvores frutíferas, pode acomodar bem o
animal. Você toma coragem e vai até o vizinho e propõe a troca:
- Dou a bicicleta pelo
cavalo.
Naquele tempo ainda não se
tratava por magrela a duas rodas. Era bicicleta mesmo. O outro negociante, mais
ou menos da sua idade, resolveu pensar no assunto. E pediu para examinar o
veículo que conhecia de o ver rodando por ali.
Entrou com seu olhar
minucioso, viu o estado da pintura, a sobrevida provável dos pneus, o selim com
o escudo do Vasco da Gama, que ele iria tirar, com certeza, e pediu cem
cruzeiros novos de volta. Não era um mau negócio para nenhum dos dois. E você
ainda lhe daria a bomba manual de encher pneus.
- Por acaso esse cavalo tem
nome? – você perguntou, a fim de não trocar o nome do bicho.
- Beiçudo! – disse o
vizinho, sem muito entusiasmo.
E você entendeu. Beiçudo,
pela aparência, já era entrado em anos. Tinha umas costelas salientes, sinal
de penúria alimentar, um pelo baio desigual, a crina toda embaraçada por falta
de cuidado.
Você leva o Beiçudo pela
rédea. A sela não veio, por muito velha e deteriorada.
- Não tem problema, amigo,
eu compro uma nova. Vou pedir ao meu pai para ajudar.
E o Beiçudo o acompanhou a
passos lentos, do fim da rua até sua casa. Você entrou solene pelo portão e o deixou
no quintal, amarrado a uma árvore, para que não saísse devastando o canteiro de
hortaliças verdinhas da mãe. Não queria trazer problemas para casa. Apenas
realizar aquele velho sonho de infância que ficou no fundo da memória, desde
Carabuçu.
Providenciou ração e foi-se
aconselhar com quem tinha mais experiência no cuidado com bicho de casco.
Começou a dar um trato no
Beiçudo, para que ele perdesse aquele ar dolente, aquele olhar de peixe morto,
que não fica bem num cavalo, num ginete fogoso. E se lembrou dos gibis de Roy
Rogers, Gene Autry, Cavaleiro Negro, Zorro, Hopalong Cassidy, Durango Kid, Fantasma,
que lia na farmácia do Zé. Seu cavalo ia ficar tão bonito como aqueles:
Trigger, Campeão, Satan, Silver, Topper, Corisco e Herói.
Mas a vida não é uma
história em quadrinhos, que sempre termina com a vitória do mocinho sobre o
bandido e as forças do mal. E o Beiçudo, nem de longe, lembrava nenhum daqueles
belos espécimes da família dos equídeos, desenhados à perfeição nas páginas dos
gibis. Nascido e criado quase ao Deus dará pelas ruas de um bairro de Nova
Iguaçu, amanheceu inapelavelmente morto, numa manhã fria de agosto, a carcaça
já quase rígida, quando você foi procurá-lo com o balde de ração na mão.
Diante da fatalidade, não
lhe restava alternativa a não ser rebocar dali o corpo defunto do Beiçudo,
antes que seus pais encrencassem com aquele estorvo. Em vez de contratar alguém
para resolver seu problema, você mesmo tenta. Sempre pôde tudo até ali em sua vida,
e não seria isto a não ser resolvido.
Amarrou o corpo do Beiçudo,
na altura do vazio, como se dizia em Carabuçu, com uma corda grossa, que foi
atada com todos aqueles nós que aprendera no manual do escoteiro mirim ao
para-choques traseiro do velho jipe Willys do pai.
Abriu o portão, deu a
partida no veículo e saiu bem devagarinho, para não dar um estacão e ali mesmo
pocar a corda. Aí saiu puxando o cadáver do Beiçudo, rua afora. Saiu da rua,
entrou noutra e mais noutra. Chegou até a pracinha do bairro. Quando ia dobrar
à direita para ganhar a direção do aterro em que deixaria seu efêmero amigo, a
corda se rompeu, pelo desgaste com o asfalto irregular.
Parou o velho jipe. Olhou a
situação. Viu que não podia fazer mais nada e resolveu abandoná-lo ali mesmo,
pois sabia que a prefeitura daria um jeito de levar o Beiçudo à sua morada
final, antes mesmo que também ele pocasse de inchado: o bico dos urubus voantes
do aterro de Gramacho.
Voltou ao jipe, que acelerou
com mais vigor, para voltar a casa, resmungando feito pobre pela manta que
levara. Ao chegar ao portão ainda aberto, viu pelo retrovisor o parceiro de
negócio passar na sua antiga bicicleta feito um corisco. E falou entredentes,
dando uma sacudidela de ombros, como que para fechar a história:
-Vai-se a bicicreta e o Beiçudo. Me espere, papudo,
que vou te fazer comer poeira como meu novo sonho: uma Lambretta vermelha e
branca 1967.
Antes tivesse ficado com a
magrela!
Imagem em depositphotos.com. |
Há sonhos de criança que realizados em adulto nos ficam caros...
ResponderExcluirCertamente. Este foi um deles.
ExcluirO Saint-Clair não perdoa!
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