(Para Roberto Assis, primo.)
Meu primo Bedu (Roberto
Assis) e eu, lá pelo início dos anos 70, resolvemos ver o show que Rita Lee
faria no Teatro Tereza Rachel (hoje Net Rio), num sábado de tempo agradável.
Por aquela altura, éramos solteiros e abandonados.
O teatro fica na sobreloja
de um shopping na Rua Siqueira Campos. Ao chegar lá, para a compra dos
ingressos, encontramos uma verdadeira muvuca, que não nos permitia saber onde
começava ou terminava a fila. Gal Costa desfilava sua vasta cabeleira, seu
largo sorriso e suas saias rodadas no meio do povaréu.
Entramos naquilo que seria
uma fila. Depois de certo tempo, combinei com o Bedu que iria dar uma volta
pelas imediações, para conhecer, e depois eu ficaria na fila, para que ele
também saísse na prospecção da área. Desci as escadas e saí pela entrada
principal, na Siqueira Campos. Do lado oposto da rua, me chamou a atenção o
movimento de pessoas num bar. Li o letreiro – Adega Pérola – e resolvi fazer
uma incursão de reconhecimento. Já na entrada, fiquei maravilhado com o balcão de
bons metros de comprimento, todo envidraçado e repleto de um número impensável
de variados tira-gostos.
As pessoas sentavam-se em
barris de vinho, em que também depositavam seus copos e os pratos com petiscos,
à esquerda de quem entrava no estabelecimento. Ao fundo havia umas poucas
mesas, todas já ocupadas. Da parede, pendia um aviso proibindo tocar
instrumentos e fazer cantoria.
Voltei imediatamente ao
furdunço da fila do teatro e disse para o Bedu abandonar a missão, porque outro
valor mais alto se alevantava lá fora, a exigir nossa presença.
- Você precisa conhecer a
tal Adega Pérola aqui em frente.
Descemos as escadas e, em
menos de cinco minuto, já estávamos com o umbigo encostado ao balcão, com uma
caneca de vinho nacional de barrica – por essa época bebíamos o que se
apresentasse plausível aos nossos parcos poderes econômicos – e atrapalhados na
escolha de um dos muitos tira-gostos para acompanhar.
A partir de então voltei à
Adega Pérola muitas vezes. Saía de Icaraí, normalmente acompanhado de amigos –
o Bedu mesmo foi em várias ocasiões comigo – e, posteriormente, da Jane, para
passar uma noite de delícias gastronômicas populares do cardápio lusitano e
brasileiro, regados ao tal vinho ou a chope, a depender das condições
climáticas.
Assim que nos nasceu o
primeiro filho, a vida mudou, como é comum. E fiquei anos sem lá voltar. Até
que há cerca de oito anos, ao levar minha filha e a Jane a Copacabana, nas
imediações do local, decidi, enquanto as esperava, tornar ao bar. Lá encontrei
o último proprietário remanescente daqueles tempos, em que religiosamente a
polícia fazia uma vistoria de olhos ditatoriais sobre os presentes.
O ambiente tinha passado por
uma reforma que inverteu a posição da prateleira e do balcão. Agora eles ficam
à esquerda, e as mesinhas de seis bancos fixos ficam à direita. Falei para ele
sobre minha história com a casa, os bons momentos ali passados. Seus olhos
brilharam, e ele abandonou a caixa registradora e veio sentar-se comigo. Disse
da perda dos irmãos que eram seus sócios no empreendimento. Contou que dois
antigos fregueses, na iminência do fechamento da adega, entraram na sociedade,
injetando capital e propiciando a reforma que eu estava vendo. E reclamou que o
Chico Buarque, que sempre ia lá para tomar sua cachacinha, não mais aparecia.
Jane chegou daí a pouco, e
ele ficou tão feliz que a presenteou com uma embalagem de chocolate. Algum
tempo depois, tivemos a notícia de sua morte. E temi pelo destino da casa.
Neste último sábado
retornamos a ela, agora com meu cunhado Jorge e sua mulher. Ele que várias
vezes fora conosco nos áureos tempos em que podíamos sair de Niterói e voltar
tarde da noite, de ônibus e barca, sem o mínimo problema de segurança. Chegamos
de táxi, vindos do Teatro Casa Grande, onde vimos Ubu Rei, e saímos de uber.
E o balcão gigante continua
lá, bonito como só, um convite irresistível a qualquer tipo de paladar, repleto
dos mais diversos tira-gostos: azeitonas variadas, quase todos os frutos do mar
ao molho vinagrete, diversos peixes à escabeche, favas, ovos de codorna, alho
assado, muitos embutidos, boa quantidade de queijos, sardinhas fritas, bolinhos
de bacalhau, frango a passarinho e outros tantos que a cozinha providencia para
chegarem quentinhos à mesa, bem ao gosto do freguês.
Desta vez, foi tudo bem
planejado, para que não perdêssemos nada. Saímos com a alma e a memória
revigoradas por doses de boas lembranças e sabores que ultrapassam o tempo.
O show da Rita Lee – aquele dos anos setenta – vimos tempos depois, no campo do Botafogo, em General Severiano.
Adega Pérola (imagem em Acervo O Globo). |
Que ótima lembrança Saint-Clair. A descoberta da Adega Perola foi uma maravilha. Ainda guardo um par das canecas de cerâmica em que o vinho era servido - Roberto Assis
ResponderExcluirObrigado! Lembrança inquebrável!
ExcluirAh... que bom ler isso... essa cumplicidade que criamos com os lugares onde nos sentimos bem... são, na verdade, uma extensão de nossa própria casa, onde queremos estar com os amigos e parentes para podermos contar e ouvir histórias - e tomar vinho ou chope, dependendo das condições climáticas.
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