Meu netinho é encantado com
o pregão da caminhonete que passa pelas ruas do bairro à cata de velharias:
- Panela velha, máquina de
lavar velha, geladeira velha!
A emissão que se espalha no
ar vem metalizada pela baixa qualidade do sistema de som do carro. Talvez seja
isso o mais interessante para ele. A voz do locutor sai espremida, rascante,
metálica:
- Ventilador velho,
liquidificador velho, geladeira velha!
Certo dia, rindo, ele
emendou:
- Vovô velho!
Mas ficou chateado quando eu
disse “Francisco velho!”.
Os pregões são formas orais
tradicionais usadas por ambulantes para anunciar a mercadoria à venda. Vem
desde que o homem saiu com os produtos de sua colheita ao encontro de possíveis
compradores, pelas ruas das vilas e das cidades. Era preciso anunciar.
No caso específico da
caminhonete do ferro-velho, o que se anuncia é o que se compra, diferentemente
dos pregões tradicionais.
Normalmente os pregões se
resumem a enunciar o nome da mercadoria ou do seu vendedor:
- Olha a banana! Olha o bananeiro!
- Olha o peixeiro!
- Olha a laranja! Olha o
laranjeiro!
Um ou outro tinham formas
mais elaboradas, como versinhos rústicos, como do vendedor de pirulitos:
- Olha o pirulito americano:
bota na boca e sai “chupano”!
Uns usavam o humor para
chamar a atenção:
- Moça bonita não paga. Mas
também não leva!
Escuto pregões desde que me
entendo por gente. Lá na minha Carabuçu natal eles existiam. Eu mesmo já os
produzi, em moleque. Saía à venda das laranjas da minha avó. Confesso, no
entanto, que tinha certa vergonha de sair gritando pelas ruas miúdas da vila.
Quando cheguei a Niterói, em
1967, deparei com o centro da cidade coalhada de camelôs, uns mais histriônicos
que outros, mas todos com seus pregões reconhecidos, à cata de clientes.
Havia um que sempre se
postava na esquina da Avenida Amaral Peixoto com a Rua Visconde do Uruguai e anunciava,
com sua voz espremida e ligeiramente gutural, um pregão bem diferente, só decodificado
ao se ver o ele que vendia:
- Quem tem criança na
escola! Quem tem criança na escola!
O /s/ de escola saía bastante chiado, como é
comum ao carioca. Assim era a forma de tentar vender seus cadernos.
Outro, que vendia traquitanas
para a cozinha, nas imediações, dizia uma frase também bem estranha, enquanto
manipulava o objeto:
- Não resta prática, nem
tampouco habilidade!
E eu ficava intrigado com
aquele verbo restar na frase. Até
que meu amigo Valter Bretas esclareceu que o camelô deveria querer dizer “não
requer prática”. Era realmente isso: o treco era de fácil manejo.
Tempos depois tive minha
atenção despertada pelos camelôs de La Paz, na Bolívia. Observei que seus
pregões tinham uma estrutura fixa, na maior parte das vezes: o nome da
mercadoria era enunciado duas vez na forma normal e uma terceira vez, na forma
diminutiva.
- Pañuelos! Pañuelos!
Pañuelitos!
- Chompas! Chompas!
Chompitas!
- Ponchos! Ponchos!
Ponchitos!
Ainda que o terceiro termo
não estivesse no diminutivo, a forma tríplice era uma constante:
- Chicha blanca! Chica
blanca! Chicha blanca!
Outro camelô, este já no Rio
de Janeiro, no calçadão da Rua São José, lá pelos anos 70/80, era uma figura e
tanto. Estava sempre de paletó e gravata, óculos escuros, cabelos cortados
rentes. Vendia baralhos, que expunha sobre sua pequena banca, e pomada japonesa,
que ficava escondida sob ela. Os baralhos eram anunciados aos brados; a pomada
japonesa, contudo, era apregoada em um tom bem baixo.
- BARALHOS DE NYLON!
BARALHOS DE PLÁSTICO! Pomada japonesa!
Cada um encontra o tom
certo, o ritmo adequado, a fórmula capaz de encantar o possível comprador.
Outros, contudo, por certas limitações, acabam criando quase um pânico nos
ouvintes. Era o caso do Zé do Ovo, já citado aqui em outra postagem.
Zé do Ovo era um pobre
coitado, deserdado da vida e do juízo perfeito, que minha sogra como que adotou
ainda adolescente. Por vezes ele passava uma temporada em sua casa e era
tratado com um filho a mais. Mas sempre apresentou algum transtorno e era tido
como meio lelé da cuca. Quando eu o conheci, ele já era um homem feito e sempre
estava por lá. Em alguns momentos, colhia folhas de couve da horta da dona
Judith, colocava numa cesta e saía a apregoar pelas ruas de Miracema:
- Olha o “coveiro”! Olha o
“coveiro”!
Mas, normalmente, voltava
para casa todo feliz, com seu sorriso banguela, a cesta vazia e o dinheirinho
miúdo no bolso.
Jean Baptiste Debret, Negras quitandeiras, séc. 19 (em pinterest.com).. |
Muito bom, Saint-Clair. Essas coisas simples, essas observações dos movimentos desprezados nas ruas das cidades... seus sons... sua gente... nossa gente... nossos Zés dos ovos... nosso distanciamento (muitas vezes necessário) do nosso juízo perfeito. Parabéns! Texto muito bom de ler.
ResponderExcluirObrigado, Elias, por sua leitura constante dos meus textos e suas palavras. Eles são um jeito de recuperar um tempo tão gratificante em nossas vidas. Grande abraço!
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