Tio
Tatão tocava a sanfona. Eu até achava que ele não tocava assim tão bem. Mas
tinha a boa vontade de estar ali. O Louro, irmão da minha mãe, batia o pandeiro,
com maestria. Seu Alcino, sempre de bom humor, marcava a quadrilha, com
comandos também num francês um tanto arrevesado. Embora isso eu só fosse
entender algum tempo depois, ao estudar a língua de Balzac e Zola. E eu só
queria dançar com a Rosélia, uma menina morena linda, de cabelos lisos, sorriso
de dentes branquinhos, irmã dos meus parceiros Romildo e Ronei. Ou com a
Marieta, outra belezura de menina, branquinha dos olhos claros, cabelos escuros
curtos, irmã dos meus amigos Zito e Ronaldo. Ou com a Ana Maria, outra
moreninha linda, magrelinha, olhos verdes, filha do seu Torquato.
Mas
acho que nunca consegui tê-las como meus pares fixos durante a dança da
quadrilha, pelas festas juninas do Grupo Escolar Marcílio Dias, lá na minha
terrinha.
Contudo
não me mortificava por isso. Sabia que, ao atender o comando do seu Alcino para
trocar de par – “Tour com o par da
direita!” –, num dado instante, eu rodopiaria com elas. E me sentiria quase nas
nuvens.
Dançar
a quadrilha junina era a experiência mais sensual que eu podia experimentar lá
pelos meus dez–doze anos. Pegava a mão da menina, passava o braço por sua
cintura, chegava meu rosto perto do dela, sentia seu cabelo esbarrar em mim, e
de imediato saía do chão da minha escola em Carabuçu e entrava em órbita na
vastidão daqueles céus estrelados de junho.
Pelo
menos, a timidez produzia essas compensações, para não me deixar ainda mais
frustrado. Como eu gostava daquele tempo das comemorações juninas! Jamais
faltava aos ensaios, normalmente após as aulas, e ficava ansiando pela magia da
grande noite da festa, para cujo sucesso o seu César Felício e o meu padrinho Said,
pai e irmão da nossa diretora, dona Olívia, se empenhavam bastante. Armavam
barraquinhas, estendiam bandeirolas coloridas, acendiam a fogueira a arder durante
todo o decorrer dos folguedos. As professoras ajudavam nas barraquinhas e na
preparação dos dançarinos. Lembro-me de Talita, Maria Amélia, Vera, Teresa,
Dalta, Maria Clara, moças ainda a quem todos os alunos chamavam de “dona”.
E,
enquanto seu Alcino não nos convocava para a exibição de gala da noite, nos
púnhamos a correr pelos espaços abertos, soltando traques, fugindo de
busca-pés, escapando de estrepa-moleques, detonando cabeças-de-nego. Ou, às
vezes, mais sossegados, assando batata doce na fogueira, comendo milho assado, lambuzando-nos
de molho de cachorro-quente, tomando refresco de groselha ou até mesmo umas
doses de quentão, para aliviar o frio trazido pela noite.
Então
chegava o momento da dança! Os meninos, com trajes à moda de caipiras – Não nos
sentíamos os mocorongos que podíamos ser. – e as meninas, em seus belos
vestidos rodados, quadriculados, e maquiadas como moças da roça em dia de
festa, ainda mais belas que nos dias comuns de aula, corríamos para o espaço
reservado à dança.
Seu
Alcino se postava em frente às duas fileiras que se formavam, trilava o apito,
para que todos estivessem atentos; tio Tatão puxava o fole; o Louro começava a
marcar o ritmo com o pandeiro; e nós íamos sob as ordens do grande mestre de
quadrilha desenhando no chão a coreografia ensaiada:
- Balancê
em seus lugares!
-
Tour com seu par!
- Anavan!
Anarriê! Balancê!
-
Changê de dame!
- Tour com o par do bisavio!
-
Aos seus lugares!
- Preparando
para o passeio na roça! Anavan! Olha cobra! É mentira! Evém chuva! É mentira! Cestinho
de flor! Tour! Balancê!
E lá
ia a quadrilha percorrendo o espaço, marcando o ritmo com a batida dos pés no
chão de cimento, cada menino de braço com seu par, as famílias ao lado vendo
seus filhos numa felicidade contagiante, e eu quase chegando às nuvens.
Militão dos Santos, Festa junina (em elrincondeyanka.blogspot.com). |
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PS: A quadrilha é uma dança
tradicional, trazida ao Brasil pelos portugueses e derivada de uma dança do
século XVIII de origem francesa, denominada quadrille.
Muitos dos seus comandos permaneceram em francês, o que gerou formas populares
adaptadas ao português do Brasil. Assim anavan
vem de en avant (em frente!); anarriê, de en arrière; (para trás); tour
(pronunciada tur), aqui mantive a
grafia francesa, (rodopio); bisavio,
da locução vis à vis (cara a cara); changê de dame, de changez de dame (troque de dama!).
Parabéns, Saint-Clair. Obrigado! Viajei...
ResponderExcluirBravo!!! Salve Sto. Antonio da Liberdade.
ResponderExcluirUm texto guardado e aprovado. Se trocar os nomes estamos em outra terrinha, pertinho de vocês. Maravilha de leitura
ResponderExcluirObrigado, Adilson, pelas palavras.
ExcluirObrigado, Adilson, pela leitura!
ResponderExcluirPARABENS MEU AFILHADO PELO LINDO TEXTO.
ResponderExcluirFIQUEI EMOCIONADO AO LER.
OLIVIA E SAID FELICIO.
Obrigado, padrinho querido! Grande abraço!
ExcluirDelicioso texto, primo. Entrei na sua máquina do tempo e retrocedi uns 65 anos. Lembranças também de festas juninas no campo do LEC, com busca pés, bombinhas, cabeças de nego, batatas e milho assados. E sem nunca esquecer as beldades citadas, amores platônicos de tantos adolescentes. Parabéns e obrigado pela viagem.
ResponderExcluirBem lembrada a festa junina no campo do LEC. Como era bonita, primo! Mas lá eu não dançava quadrilha. Eu era apenas um moleque brincando, sem sonhar com a dança com as meninas. Obrigado pela leitura e o comentário!
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