21 de agosto de 2017

QUADRILHA

Tio Tatão tocava a sanfona. Eu até achava que ele não tocava assim tão bem. Mas tinha a boa vontade de estar ali. O Louro, irmão da minha mãe, batia o pandeiro, com maestria. Seu Alcino, sempre de bom humor, marcava a quadrilha, com comandos também num francês um tanto arrevesado. Embora isso eu só fosse entender algum tempo depois, ao estudar a língua de Balzac e Zola. E eu só queria dançar com a Rosélia, uma menina morena linda, de cabelos lisos, sorriso de dentes branquinhos, irmã dos meus parceiros Romildo e Ronei. Ou com a Marieta, outra belezura de menina, branquinha dos olhos claros, cabelos escuros curtos, irmã dos meus amigos Zito e Ronaldo. Ou com a Ana Maria, outra moreninha linda, magrelinha, olhos verdes, filha do seu Torquato.
Mas acho que nunca consegui tê-las como meus pares fixos durante a dança da quadrilha, pelas festas juninas do Grupo Escolar Marcílio Dias, lá na minha terrinha.
Contudo não me mortificava por isso. Sabia que, ao atender o comando do seu Alcino para trocar de par – “Tour com o par da direita!” –, num dado instante, eu rodopiaria com elas. E me sentiria quase nas nuvens.
Dançar a quadrilha junina era a experiência mais sensual que eu podia experimentar lá pelos meus dez–doze anos. Pegava a mão da menina, passava o braço por sua cintura, chegava meu rosto perto do dela, sentia seu cabelo esbarrar em mim, e de imediato saía do chão da minha escola em Carabuçu e entrava em órbita na vastidão daqueles céus estrelados de junho.
Pelo menos, a timidez produzia essas compensações, para não me deixar ainda mais frustrado. Como eu gostava daquele tempo das comemorações juninas! Jamais faltava aos ensaios, normalmente após as aulas, e ficava ansiando pela magia da grande noite da festa, para cujo sucesso o seu César Felício e o meu padrinho Said, pai e irmão da nossa diretora, dona Olívia, se empenhavam bastante. Armavam barraquinhas, estendiam bandeirolas coloridas, acendiam a fogueira a arder durante todo o decorrer dos folguedos. As professoras ajudavam nas barraquinhas e na preparação dos dançarinos. Lembro-me de Talita, Maria Amélia, Vera, Teresa, Dalta, Maria Clara, moças ainda a quem todos os alunos chamavam de “dona”.
E, enquanto seu Alcino não nos convocava para a exibição de gala da noite, nos púnhamos a correr pelos espaços abertos, soltando traques, fugindo de busca-pés, escapando de estrepa-moleques, detonando cabeças-de-nego. Ou, às vezes, mais sossegados, assando batata doce na fogueira, comendo milho assado, lambuzando-nos de molho de cachorro-quente, tomando refresco de groselha ou até mesmo umas doses de quentão, para aliviar o frio trazido pela noite.
Então chegava o momento da dança! Os meninos, com trajes à moda de caipiras – Não nos sentíamos os mocorongos que podíamos ser. – e as meninas, em seus belos vestidos rodados, quadriculados, e maquiadas como moças da roça em dia de festa, ainda mais belas que nos dias comuns de aula, corríamos para o espaço reservado à dança.
Seu Alcino se postava em frente às duas fileiras que se formavam, trilava o apito, para que todos estivessem atentos; tio Tatão puxava o fole; o Louro começava a marcar o ritmo com o pandeiro; e nós íamos sob as ordens do grande mestre de quadrilha desenhando no chão a coreografia ensaiada:
- Balancê em seus lugares!
- Tour com seu par!
- Anavan! Anarriê! Balancê!
- Changê de dame!
- Tour com o par do bisavio!
- Aos seus lugares!
- Preparando para o passeio na roça! Anavan! Olha cobra! É mentira! Evém chuva! É mentira! Cestinho de flor! Tour! Balancê!
E lá ia a quadrilha percorrendo o espaço, marcando o ritmo com a batida dos pés no chão de cimento, cada menino de braço com seu par, as famílias ao lado vendo seus filhos numa felicidade contagiante, e eu quase chegando às nuvens.

Imagem relacionada
Militão dos Santos, Festa junina (em elrincondeyanka.blogspot.com).
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PS: A quadrilha é uma dança tradicional, trazida ao Brasil pelos portugueses e derivada de uma dança do século XVIII de origem francesa, denominada quadrille. Muitos dos seus comandos permaneceram em francês, o que gerou formas populares adaptadas ao português do Brasil. Assim anavan vem de en avant (em frente!); anarriê, de en arrière; (para trás); tour (pronunciada tur), aqui mantive a grafia francesa, (rodopio); bisavio, da locução vis à vis (cara a cara); changê de dame, de changez de dame (troque de dama!).

9 comentários:

  1. Parabéns, Saint-Clair. Obrigado! Viajei...

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  2. Bravo!!! Salve Sto. Antonio da Liberdade.

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  3. Um texto guardado e aprovado. Se trocar os nomes estamos em outra terrinha, pertinho de vocês. Maravilha de leitura

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  4. PARABENS MEU AFILHADO PELO LINDO TEXTO.
    FIQUEI EMOCIONADO AO LER.
    OLIVIA E SAID FELICIO.

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  5. Delicioso texto, primo. Entrei na sua máquina do tempo e retrocedi uns 65 anos. Lembranças também de festas juninas no campo do LEC, com busca pés, bombinhas, cabeças de nego, batatas e milho assados. E sem nunca esquecer as beldades citadas, amores platônicos de tantos adolescentes. Parabéns e obrigado pela viagem.

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    1. Bem lembrada a festa junina no campo do LEC. Como era bonita, primo! Mas lá eu não dançava quadrilha. Eu era apenas um moleque brincando, sem sonhar com a dança com as meninas. Obrigado pela leitura e o comentário!

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