12 de dezembro de 2016

ILUSTRE PASSAGEIRO

(Para Flávio e Ronaldo Mello, primos.)

Veja, ilustre passageiro,
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem ao seu lado.
E, no entanto, acredite,
Quase morreu de bronquite:
Salvou-o o Rhum Creosotado.
Com quinze anos, viajei ao Rio de Janeiro pela primeira vez, na companhia do Pedro Nunes, amigo da família, a quem fui confiado.
Já lhes contei esta história possivelmente em algum texto por aí, mas as lembranças são como galinha ciscando no terreiro, bicando freneticamente o chão, à procura de bichinhos para comer.
Por isso, estou voltando à mesma cantilena de outrora, a fim de atender essa galinha bicante da memória.
Menino quase inocente do interior, que apenas conhecia como maior cidade Campos dos Goytacazes (Não concordo, absolutamente, com esta grafia esdrúxula!), cheguei ao Rio, entretanto, sem muitos deslumbres. Nunca fui de me assustar com as coisas do mundo, apesar da minha origem.
Por essa época, o Rio de Janeiro ainda era uma cidade quase cordial. Talvez o fosse, pois meus tios João e Juraci, em cuja casa me hospedei, me deixavam passear à vontade, dando-me, apenas, as orientações geográficas, para que não me perdesse no emaranhado da cidade grande. Jamais me alertaram para qualquer problema de segurança, violência ou esperteza dos cariocas.
Pude, assim, a bordo da minha pouca idade, andar de Botafogo, onde eles moravam à Rua da Passagem, para Copacabana, pelo Túnel Novo, caminhando, flanando, sem o menor assombro ou contratempo. Tanto na ida, quanto na volta.
Às vezes pegava ônibus, como quando fui conhecer o maior edifício da América do Sul à época, o Avenida Central, por recomendação de outro tio, o José Catarina, também morador de Botafogo, que gostaria de saber a minha reação – eu que sempre vivera ao nível da vargem e do tabual –, ao olhar pela vidraça do corredor do trigésimo sexto andar o burburinho lá embaixo. Embora não tivesse achado nada tão espantoso, para não o decepcionar, inventei vertigens e tonteiras que não tive. Ele ficou muito feliz em ter podido me proporcionar aquela experiência frenética e inusitada.
Mas o Rio de Janeiro certamente marca qualquer moleque que o vê pela primeira vez. No entanto, entre a aventura de ir ao Pão de Açúcar num final de tarde e o gosto da pizza da Pastitália, alimento que estava entrando em moda, confesso que me marcou mais o gosto da pizza: achei-o por demais ácido e vaticinei para os primos Apolônio, Flávio e Ronaldo, que me levaram a experimentá-la, que aquilo não daria certo. Talvez aí estivesse enterrada qualquer futura pretensão minha de me tornar profeta de alguma coisa.
Por vezes ia sozinho à praia de Botafogo, a pé e orientado por tia Juraci a não entrar n’água, já poluída àquela altura, só para me relembrar do mar, que conheci, ainda muito menino, em Guaxindiba, no extremo norte do estado. E não deixei de tomar banho na praia de Copacabana, desta vez acompanhado pelo Apolônio, que me apresentou ao “caixote”: fui lançado aos trambolhões de volta à areia, por uma onda mal-humorada. Naquele momento mesmo, decidi que havia total incompatibilidade minha com o mar, tanto que pouquíssimas vezes na vida me aventurei ao desconfortável banho de água salgada. Definitivamente, o mar não é minha praia.
Ao contrário, o cinema era a minha praia. Andei com os primos e, por vezes, sozinho a conhecer diversas salas de cinema, a grande diversão da época. Havia mesmo uma frase de propaganda que apregoava “Cinema é a maior diversão”. E eu acreditava nisso piamente. O Rio de Janeiro, por aquele tempo, tinha excelentes, maravilhosas salas cinematográficas: Roxy, Rian, São Luís, Azteca, dentre as melhores.
Ao Azteca, que ficava no Catete, fui certa noite com o Apolônio, para assistir ao clássico O homem que matou o facínora, com John Wayne, James Stewart, Lee Marvin e Vera Miles, nos papéis principais. Tomamos o bonde em Botafogo e descemos próximo ao cinema. Este bonde ainda trazia a velha propaganda do Rhum Creosotado com que iniciei este texto.
Ao entrar no cinema – filme com classificação para dezoito anos –, vestido com um paletó emprestado de um dos primos, para parecer mais velho, e com o respaldo de um buço que me começava a sujar a platibanda do beiço, tive de fazer cara feia, por recomendação do Apolônio, e aguentar calado que, à pergunta do bilheteiro por nossa idade, ele respondesse:
- Tenho dezoito anos, e meu primo também.
Fiz cara de poucos amigos, conforme previsto no manual do homem latino-americano, e adentrei a sala de projeção. Até hoje me lembro do filme. E nunca consegui entender por que motivo ele tinha a classificação de dezoito anos.
E vi muitas outras coisas naqueles meus quinze anos. Até na Rocinha fui parar, por equívoco da tia Juraci ao tomar o ônibus no Jardim Botânico, para voltar a Botafogo. Lá no fim da linha – a favela já tinha fama de perigosa -, descemos do ônibus que chegava e entramos de imediato no que partia.
Alguns dias após, voltei para casa em Carabuçu, numa viagem de aventura bolada pelo Apolônio: por via férrea. Fomos até a estação da Leopoldina comprar passagens para Santo Eduardo, vila próxima â minha. Todos os primos viajariam juntos. Era tempo de carnaval. No guichê, o bilheteiro disse que não havia mais passagens. Apolônio chamou o homem reservadamente e conseguiu os bilhetes. Teve de molhar a mão do corrupto que os escondia, para faturar um por-fora. Saímos à noite e chegamos ao destino pela manhã.
Desse tempo para cá, venho me sentido um passageiro ilustre da vida, com todos os percalços, apertos e afrontamentos comuns a quem vive. Nunca tive mau humor. Nem também fui um deslumbrado inconsequente. E procurei estar constantemente no limite daquilo que me pareceu sensato. E, apesar de ter vivido a época da porralouquice e do desbunde, ainda que parecesse um doidão, sempre viajei com passagem comprada, no banco da janela, para melhor poder apreciar a vista. Até hoje não sou o que bebe o Rhum Creosotado. Sou o passageiro ao lado. E tenho ido regularmente bem.

Cine Azteca, na Rua do Catete (imagem em pinterest.com).

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