(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 15/10/2010.)
Na venda do
Alcides, em Cacimbas, quase tudo acontecia. Nesse dia, Marino e Mariano se
engalfinharam por uma ninharia: saber qual dos dois conseguiria, em menor
tempo, o amor de Mariana, donzela bonita e prendada, sonhada por todos.
Claro estava
que nenhum dos dois conseguiria. Onde já se viu ficar discutindo isso em venda
de beira de rua, movidos a doses de genebra e conhaque de alcatrão?
Mas, enfim,
estavam os dois ali agora atracados um ao outro, rolando no chão do armazém,
com uma chusma de beberrões em volta, atiçando ainda mais a fúria dos
desafetos. Se não fosse a disposição do dono do estabelecimento, o campista
dobrado de nome Alcides Oliveira, que pulou o balcão com um chicote na mão e
entrou de lambadas na cacunda deles, os dois talvez estivessem
brigando até hoje.
Nessa época,
São Francisco do Itabapoana atendia pelo nome de Cacimbas e tinha duas ruas em
forma da letra T: uma chegava e não saía e a outra ia e não voltava. No chão,
em lugar de pedra, asfalto ou barro, era areia o que se via, por muito próxima
da praia de Guaxindiba.
Vez e outra,
Alcides tinha de tomar atitudes para pôr ordem na casa. Morava atrás, com a
família numerosa, cheia de meninos e meninas, uns já mais crescidinhos, e não
podia tolerar qualquer balbúrdia em seu estabelecimento comercial.
Quando,
enfim, conseguiu agarrar Marino e Mariano pelo colarinho, levou-os até a porta,
aos safanões, ordenando que só voltassem depois de curada a carraspana. Também
não podia ser radical para não perder a rala freguesia de uma vila quase sem
ninguém.
Num senão as
coisas voltaram aos conformes.
Passou-se
uma semana e lá estão os dois de volta, sóbrios, conversando pela rua. Alcides
os avista de dentro da venda e se previne: põe o chicote ao alcance da mão.
Os dois
entraram com a cara mais deslavada do mundo, cheios de boas-tardes seu Alcides,
como tem passado. Para não parecer mais turrão do que de fato era, Alcides
respondeu. Mas foi só o primeiro pedir uma dose de genebra, para advertir que
não queria confusão, discussão e briga, por causa de mulher. Os dois disseram
para não se preocupar, que aquilo tinha sido um destempero que não voltaria a
acontecer, as pazes já tinham sido refeitas, eles amigos de infância. Toda essa
ponderação liberou Alcides para servir a dose de bebida.
Conversa
vai, conversa vem, bebericam daqui, bebericam de lá, comem um naco de salame,
uma fatia de charque do Rio Grande, a temperatura começa a esquentar. Agora não
mais sobre Mariana, mas sobre Goitacás e Americano. O meu time é melhor, o seu
não tem tradição, lembra da goleada de domingo passado, isso foi um acaso.
O Alcides só de olho! Num vintém de tempo, sem que o cuspe chegasse ao
chão, a turma presente na venda se dividiu na discussão sobre os dois times,
até que o caldo entornou. Saiu sopapo para todos os lados, de ninguém se
entender. Todo mundo batia e apanhava, indistintamente.
Alcides,
vendo que o chicote era pouco para a gravidade da ocasião, correu lá dentro do
quarto, de onde já veio com a garrucha engatilhada. O tiro ribombou por cima do
topete dos briguentos, com os chumbos se aninhando no alto do forro da venda,
de pé direito avantajado. Foi um deus-nos-acuda! Mais de dez saíram espremidos
pelas duas portas da venda, na velocidade do ciscar de uma galinha, como se os
corpos todos fossem apenas fantasmas apavorados.
Já do lado
de fora, alguns ainda pediram calma seu Alcides, será que a gente não pode nem
discutir futebol mais aqui?
Por essas e
outras é que Alcides vendeu o estabelecimento, incluída a casa, o quintal cheio
de pé de fruta, galinheiro com galinhas, patos e marrecos, chiqueiro com
cachaço, porcas e leitões, cacimba cheia, e foi se estabelecer na chegada da
vila de Liberdade, na curva dos eucaliptos, em terras de Moacir Monteiro, na
estrada que ia e voltava, para todo o sempre.
Imagem em areialvirtual.blogspot.com. |
Espetacular! Seus textos são deliciosos. Têm gosto de linguiça bem fritinha, apreciada com cachaça, em uma cozinha com um fogão à lenha no canto, mandando ver num assado gostoso, rsrsrs.
ResponderExcluirObrigado, Silvia, por suas palavras e força.
ExcluirEstou alegre por encontrar blogs como o seu, ao ler algumas coisas,
ResponderExcluirreparei que tem aqui um bom blog, feito com carinho,
Posso dizer que gostei do que li e desde já quero dar-lhe os parabéns,
decerto que virei aqui mais vezes.
Sou António Batalha.
Que lhe deseja muitas felicidade e saúde em toda a sua casa.
PS.Se desejar visite O Peregrino E Servo, e se o desejar
siga, mas só se gostar, eu vou retribuir seguindo também o seu.
Obrigado, António! Estou em viagem e, tão logo volte, visitarei seu blog.
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