14 de setembro de 2011

A MÃE DO DOUTOR AFONSINHO

A mãe do Dr. Afonsinho era um libelo contra a atividade profissional do filho. Endocrinologista rigoroso com seus pacientes, tinha seu trabalho solapado pelas taxas de dona Cinira: todas escandalosamente acima do que recomendam os manuais médicos menos rigorosos.  Colesteróis, triglicérides, glicose: tudo pela tampa, como se diz popularmente.

Aí Dr. Afonsinho ficava sem moral para exigir de seus pacientes a parcimônia no consumo de costeletas de porco, linguiças, chouriços, massas e guloseimas em geral, sobretudo a excelente goiabada cascão com queijo gordo e a ambrosia de pôr a perder deuses do Olimpo que se faziam na região.
No entanto, dona Cinira havia decidido, tão logo enterrara o marido no campo santo do Morro do Cruzeiro, debaixo de luto fechado, que doravante teria outros prazeres que não apenas as saliências de lençóis, como era do agrado do finado e das quais, verdadeiramente, não achava muita graça. Então se dedicou a comer tudo aquilo que a saúde melindrosa do extinto marido, quando em vida, lhe limitava e cuja dieta se resumia a caldinhos, sopinhas, papinhas, coisas assim de uma sensaboria desgraçada.
Em vista deste seu novo comportamento, vez e outra, Dr. Afonsinho exigia de sua mãe que fizesse os controles habituais. E a encaminhava ao laboratório do amigo Hélio, especialista na aferição das taxas dos seus pacientes suspeitos. E lá ia dona Cinira, contrafeita, exibir seu braço para que o vampiro recolhesse dela a quantidade de sangue capaz de denunciá-la ao Conselho Regional de Medicina.
No entanto, por orientação de sua vizinha de muitos janeiros, descobriu uma fórmula eficaz para iludir as medições empreendidas pelo patologista: passava uma semana a poder de suco de couve, em jejum, e dieta de jiló, no almoço e no jantar, ao fim da qual se dispunha a fazer o tal controle exigido pelo filho.
Assim que recebia o resultado com os números dentro de limites civilizados, corria para a lanchonete Pastéis & Sucos, bem ali na rua que vai dar na ponte, e se agarrava a coxinhas, rissoles, pastéis, acompanhados por caldo de cana e refresco de groselha carregado no açúcar, de fazer o pâncreas se assustar.
Nesses momentos, indefectivelmente, passava algum colega do Dr. Afonsinho que, apavorado com os exageros da velha senhora, ligava para seu celular, a fim de que ele tomasse providência imediata, sob pena de dona Cinira sair dali em coma diabética grave, ou com entupimento definitivo das coronárias.
Quase sempre Dr. Afonsinho não podia, porque, naquele mesmo instante, estava em atendimento no hospital. Então providenciava uma ambulância de folga e determinava a dois enfermeiros que fossem lá na lanchonete resgatar sua mãe, antes que uma catástrofe se abatesse sobre ela e a Medicina não dispusesse de recursos para mantê-la no rol dos vivos.
Dona Cinira saía de lá, sob veementes protestos, implorando pela ajuda do proprietário daquela casa de perdição, Antônio Manuel, que infelizmente não podia fazer nada, já que ele mesmo estava sob a vigilância rigorosa do médico, visto também andar abusando de frituras, gorduras e açúcares.
E, olhando triste dona Cinira ser introduzida na traseira do reboque médico, como se fosse uma louca perigosa, dizia-lhe:
- Dona Cinira, se não é a senhora, sou eu! A senhora conhece seu filho, dona Cinira, mas abusa demais da conta! O que é que eu posso fazer, dona Cinira? O que é que eu posso?
Como grand finale, lá ia a ambulância, sirene ligada, pedindo passagem aos outros veículos e aos pedestres para, mais uma vez, salvar dona Cinira, como determinavam as recomendações rigorosas de seu filho endocrinologista e depositá-la em sua casa retirada da cidade, na chácara da Volta da Areia.

Rembrandt, A aula de anatomia do dr. Tulp, 1632 (imagem
em pt.wikipedia.org).

2 comentários:

  1. Esse Dr.Afonsinho está me parecendo discípulo do velho Simão Bacamarte, o Alienista.

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  2. Hahahahahahahahahahahahahahahahahahha...rachando de rir!

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