É bem verdade que sem o roteiro de um filme de grande orçamento, sem mocinhos e bandidos, e com cachorro de verdade.
Era uma noite animada de verão, nos idos de sessenta. A "rua" - como chamávamos a vila - estava cheia, com as pessoas a passear pela praça e pela rua principal, quando surgiu a notícia de que um cachorro doido tinha chegado do lado da estrada que vem de Bom Jesus. Para os que não sabem, cachorro doido, para nós, é o cão acometido por raiva (hidrofobia), doença provocada por vírus.
Foi um Deus nos acuda!
Tenho para mim que o maior medo da população do interior não era propriamente de saci-pererê ou mula-sem-cabeça, entes que, vez e outra, andavam assombrando as gentes. O maior medo era de boi bravo, cobra venenosa, fiscal do governo e cachorro doido. Mais ou menos assim, do menos perigoso, para o mais peçonhento.
Algumas vezes, as ruas da vila ficavam à mercê de bois bravíssimos, que vinham tocados por boiadeiros valentes, em seus cavalos ariscos, as ruas vazias, as casas fechadas: todos com medo. Era com pavor que eu me aventurava numa janelinha colocada bem no alto da parede da venda de meu pai, para ver a passagem do boi.
As cobras, por sua vez, só eram encontradas nos matos nos arredores da vila, nas touceiras de bambu ou nas moitas de capim. Mas, enfim, estavam elas no seu habitat. E só atacavam, quando incomodadas. O mais que sabia era pelas narrativas dos homens que frequentavam nossa venda, para as compras da semana, para comerem o pé de moleque afamado que minha mãe fazia e para jogarem conversa fora. Uma conversa que enchia os meus ouvidos infantis de magia e medo: casos de jararaca, de surucucu, de surucucu corredor, de cobra-coral, de jararacuçu e até de caninana.
Já os fiscais do governo, quando lá iam - e não era com muita frequência - também causavam desconforto, que eu observava pelo fechamento quase completo do comércio local. De repente, parecia feriado na vila. Descobri, muito tempo depois, que um funcionário da coletoria de Bom Jesus mandava avisar a seus amigos da vila de que para lá estava indo a fiscalização. E era um valha-me, Deus!
No entanto, como aquela noite de domingo alvissareira, que terminou mais cedo pelo pânico no povo, nunca mais houve!
Quando se ouviu o grito de "Cachorro doido!", estabeleceu-se um corre-corre nas gentes para dentro das casas próximas. Lembro-me de meninas que eu já olhava com certo interesse correrem com seus vestidos rodados de faixa na cintura. Eu me socorri da casa de meu avô, que ficava bem diante da pracinha.
Imagem em lilicarabinabr. blogspot.com |
O povo da cidade grande não sabe avaliar o que seja um cachorro doido solto numa vila. É como se fosse um enviado do Belzebu a prenunciar desgraceira. Quem fosse mordido de cachorro doido podia contar que estaria condenado a uma morte pavorosa, como as narrativas tradicionais davam conta: ter de ser amarrado a um tronco de árvore, onde se estrebuchava até morrer, urrando e babando como o próprio cão. Era uma imagem tenebrosa!
Ao recobrar um pouco da calma e da coragem, após a iniciativa de vários homens dispostos a sacrificar o bicho, corri para casa, a fim de avisar a meu pai, porque soube que o cachorro havia entrado no quintal da casa do tio Nalim, que fazia divisa com o nosso. Como eram separados apenas por uma cerca de fios de arame, facilmente o animal passaria de um para o outro.
Meu pai, de imediato, tirou do guarda-roupa sua garrucha quarenta-e-quatro, cano duplo, pintado de branco para evitar ferrugem, e abriu a janela de seu quarto. Foi no exato momento em que o cachorro estava no limite entre os dois quintais.
O tiro que a garrucha disparou no meio daquela noite de domingo ribombou como uma carga de canhão das guerras dos antigamentes. O bicho emitiu um ganido lancinante, anunciando que o tiro pegara nele, e saiu por onde entrara.
Meu pai disse que acertara o "vazio" do cachorro, parte de sua anatomia desprovida de osso, abaixo da costela e um pouco à frente das patas traseiras. E me recomendou que não dissesse a ninguém que fora ele o autor do tiro, o que fiz até o presente momento.
Na vila, então, todos queriam saber quem atirara no cão. Indagavam-se os que tinham armas, uns aos outros, e não fora nenhum deles. Quem foi? Quem não foi? E a dúvida permaneceu.
O bicho ferido se retirou para os pastos do lado do Zé de Paula e foi encontrado morto no dia seguinte.
O autor do disparo nunca foi identificado. E nunca mais houve um dia de cachorro doido como aquele em Carabuçu, sem roteiro de Hollywood, sem mocinhos e sem bandidos. Mas com um herói, para mim: meu pai!
É assim que os mitos se formam e se propagam.
ResponderExcluirAs mulas lá de calçado, além de sem cabeça, tinham estrela na testa. Um horror!
ResponderExcluirCronica deliciosa! parabéns!
ResponderExcluirObrigado, primo!
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