28 de julho de 2016

DONA SANTINHA


Um tiquinho antes de seu Pergentino entregar a alma a Deus, dona Santinha já começara a flertar com o alemão insidioso. Ele mesmo não atinava bem com certos comportamentos da esposa, até que uma das filhas, ao retornar da consulta médica a que levara a mãe, explicou para ele os primeiros sintomas do Mal de Alzheimer. E lhe fez recomendação expressa:

- Pai, é preciso muita paciência agora com a mãe. Ela vai começar a esquecer as coisas recentes, que aconteceram logo atrás; vai repetir perguntas; parecer criança. Todos nós teremos de ter muita paciência com ela.

O alquebrado Pergentino, formado na tradição da velha escola brasileira de maridos, entendeu aquilo que lhe foi possível e se dispôs a aceitar o que viesse de fardo para a sua vida. Afinal, sua querida Santinha, agora beirando os oitenta anos, fora possuída de uma entidade estrangeira, de nome esquisito, que a fazia retroceder na idade, a ficar banguela das ideias, a desentender o dia a dia. Às vezes, parecia possuída, segundo ele.

Mas não havia sido sempre assim. Quando conheceu Santinha, ela era uma moça bonita, sacudida, cheia de planos e esperanças na vida, que os dois resolveram, um dia, compartilhar. Isto fazia já algum bom tempo, e ele tinha saudades daquela época. Mas agora isto são águas passadas, como gostava de repetir.

Já ele mesmo, forjado nas lides brabas do interior, amansador de cavalo xucro, curador de bicheira de bicho grande, não sofrera nadinha disso. Era um portento de vigor! A única novidade – como costumava chamar as falhas na saúde – era uma espinhela caída que o açoitava, principalmente, nas noites de inverno, em que a temperatura de Carabuçu beirava o Círculo Polar Antártico nos escaninhos da noite, e já não lhe era mais possível espantar o frio a poder de goles de pinga, por recomendação médica, tendo em vista os anos virados na folhinha.

- Não vá mais abusar da pinga, seu Pergentino! Seus vinte anos já ficaram nos cacos do tempo! – disse-lhe o doutor formado na capital.

Contudo, no entanto, quem abotoou o paletó primeiro foi justamente seu Pergentino. Com toda a saúde de que sempre desfrutara, arrumou a alma e partiu para a eternidade num dia claro de verão, na ocasião em que a família estava reunida para comemorar suas bodas de não se sabe quantos anos de casado com dona Santinha. Nas comemorações da véspera, mataram-se vários capados, sacrificaram-se tantas galinhas, cozeram-se quilos de mandioca e rolos e rolos de macarrão chatinho, mexeram-se travessas de farofa e gamelas de tutu estrelado de ovo cozido por cima.

O passamento de seu Pergentino foi um baque terrível para a pobre coitada da esposa, já bastante avariada em seu juízo.

Durante o velório – as pessoas amigas fazendo voltas em torno do caixão acomodado na sala grande da casa –, dona Santinha tinha rompantes impossíveis de manter a gravidade daquela hora extrema, bruxuleada por velas espalhadas por vários móveis. Às vezes, num rompante, virava o rosto, da cadeira onde se colocara próxima ao marido morto, olhava de soslaio para o quadro com a imagem do Sagrado Coração de Jesus na parede à esquerda e lhe dirigia palavras duras:

- Estou de mal com você! Não quero saber de conversa! Foi levar agora o meu Pergentino!

Até mesmo os filhos tinham de controlar o riso, para não parecer desrespeito em momento tão solene. Alguns presentes saíam para o terreiro, a fim de liberar a gargalhada e não parecer desrespeitosos com a família.

Outras vezes dona Santinha se levantava da cadeira, ia até a cozinha tomar um gole d’água e, passando diante da imagem de Nossa Senhora das Dores, que ficava num oratório no corredor, não deixava de consignar sua contrariedade:

- Não estou bem com você, não, Nossa Senhora! Isso não se faz! Pergentino estava tão bem de saúde! Não quero conversa com você também.

E apelava para os sentimentos de mãe:

- Por que não falou pro seu filho segurar um pouco mais o Pergentino aqui comigo? Agora está ele lá, estendido no caixão, duro como um pau, sem um riso naquela cara. Estou de mal com você também! Peguei birra!

E o velório de seu Pergentino, que viveu toda a vida sustentado por uma saúde quase de ferro, tendo morrido por uma coisinha à toa de somenos importância, foi tocado assim entre a gravidade do fato e as intervenções inocentes de dona Santinha, de braço dado com aquele alemão odioso, a lhe desarranjar as ideias e arrebatá-la bem no finzinho da sua vida.


Imagem em gartic.com.br.

20 de julho de 2016

INVERNO


Lá fora faz um frio medonho
Aqui dentro no entanto
Já aconchegado ao conforto do lar risonho
Esqueço o sopro hibernal
Que vem do oceano
E nos ameaça desde o fim do outono
Lanço mão de um recurso espiritual
Não no sentido anímico deste ser abúlico
- Tão propenso ao sono –  
Mas do espírito que preside toda gama de bebida quente
Engendrada pela mente humana
E antes que me assalte qualquer tipo de achaque
- Ou coisa que o valha –
Dos músculos trêmulos
Da carne flácida
Bebo aos goles supremos
O espírito que emana da garrafa de conhaque.

Pôr do sol de inverno (foto do autor).


15 de julho de 2016

À MODA DE DJAVAN, RAUL SEIXAS, CAETANO, SEI LÁ!


Juro que não perjuro
Muro
Na vastidão da planície abobadada
E no vão vazio da estrada
Entre o sim e o nada
Uma coisa faz comichão na minha veia
Pode ser ou não ser
Melhor não saber
Quem sabe quiçá talvez
O disco na vitrola não rola mais
O velho tango que já deixei pra trás
O copo cheio
A fada o brilho a teia
Que é isso companheiro
A vida é cheia de incompreensões alheias
E eu aqui
Lucubrando numa coerência estranha


Museu do Amanhã, Rio de Janeiro (foto do autor).

2 de julho de 2016

CACHORRO DOIDO


Era uma noite morna de domingo na vila. A missa havia acabado há bem umas duas horas, e a Rua Coronel Alfredo Portugal e a Praça Antônio Guimarães estavam cheias das mesmas pessoas de todos os dias anteriores, de todos os anos anteriores, enquanto a vila teve suas lavouras de milho, arroz, café, cana de açúcar; seu comércio pulsante; seus quebrantos e encantos. Como se fosse uma festa do interior.
Meus avós Juquinha e Maína, pais da minha mãe, tinham sua casa diante da pracinha. Eu estava lá na varanda, com meus dez-onze anos, olhando o movimento de pessoas naquele vaivém que parecia não ter fim. Mesmo que fosse tudo diminuto, tudo bem caipira, bem interiorano, aos meus olhos, contudo, era o mundo inteiro. Por essa época, achava que a vila fora o início do mundo. Tudo partira dali. O resto era o resto.
Lembro-me de algumas meninas da minha idade, com belos vestidos de domingo, a passear pela praça, naquele instante.
Até que se ouviu um grito de alerta, para um dos mais terríveis acontecimentos possíveis entre nós:
- Cachorro doido!
Nós tínhamos aprendido com as histórias que nos contavam que cachorro doido era das piores coisas que poderiam ocorrer em nossa comunidade. Uma mordida de cachorro doido era sinal de uma dolorosa morte anunciada, o padecente amarrado a uma árvore, espumando pela boca, sem poder ver água, agonizando até a morte, gritando desatinadamente. Não havia remédio possível. Eu mesmo tinha – e ainda tenho – a imagem de um homem qualquer, que nem existiu, amarrado, o corpo todo suado, a vociferar imprecações, espumando, com os olhos injetados, nos estertores da morte. Cachorro doido foi o meu maior medo.
A rua e a praça se esvaziaram rapidamente. Eu corri para minha casa, dois quarteirões além, levando a notícia de que um cachorro doido aparecera do lado do Elias Nunes e vinha em direção ao centro da vila.
Meu pai fechou toda a casa, recomendou que não saíssemos, pegou sua garrucha cano duplo, carga reforçada, e foi para o terreiro, pois havia a notícia de que o amaldiçoado viera pela rua de trás.
O quintal da casa do tio Nalim, que dava para tal rua, ficava aberto até que ele colocasse sua caminhonete na garagem. O cachorro por ali entrou.
Havia uma lua cheia a iluminar a pouca iluminação da vila, cujas lâmpadas, por essa época, pareciam tomates maduros.
Meu pai vislumbrou o vulto do cão próximo à garagem, construída em madeira. Mirou no bicho e disparou aquele tirambaço que uma garrucha cano duplo, carga dobrada, faria numa noite morna de domingo numa vila pacata do interior.
O cachorro ganiu de dor e saiu correndo.
Meu pai entrou em casa e nos disse que acertara o bicho no vazio, uma região que fica entre o final das costelas e a anca. E pediu que ninguém jamais dissesse que havia sido ele o autor do tiro. Não queria que soubessem que tinha uma arma em casa, num tempo que era comum ter arma em casa.
Ficamos todos quietos, diante das especulações de quem teria desferido tal potente – ou barulhento – tiro naquela noite morna.
No dia seguinte, encontraram o cão morto no além do valão Liberdade, depois da ponte perto da fábrica de manteiga do Libelton Boechat, já dentro das terras do Zé Doença.

Meu pai matou o cachorro doido e o medo terrível que eu tinha de ser mordido por um bicho excomungado desses, que nos metia em um sofrimento bem próximo do que padeceriam as almas condenadas ao fogo eterno do inferno, segundo a crença comum.


Teia de aranha em  poste de iluminação (foto do autor).