27 de abril de 2016

MINHA MÃE FAZ NOVENTA ANOS

(Para minha mãe, Zezé, por seu aniversário.)

Neste fim de semana e fim de mês, minha mãe faz noventa anos. Os desavisados podem pensar que iremos comemorar o aniversário de uma senhorinha idosa, já alquebrada pelo tempo. Ledo engano, como diriam os antigos! Minha mãe, aliás, nossa mãe – ela tem cinco filhos e uma fieira de netos e bisnetos – ainda está lúcida, ativa e divertida como tem sido nesses últimos sessenta e nove anos e alguns meses. Isto só da parte que me cabe testemunhar, como filho mais velho.
Particularmente, posso dizer que aprendi muita coisa com ela, além da visão otimista e descontraída da vida. Por exemplo, o gosto pela poesia, pela literatura. Ela sempre foi uma leitora interessada. E tanto os livros de fundo religioso, quanto os da literatura dita profana, estiveram sob seu olhar atento. Eu, ainda mal alfabetizado, li pela primeira vez alguma coisa de Casimiro de Abreu que ela tinha em casa: Canção do exílio e outras poesias. Li também ainda miúdo seu livro de Raimundo Correia, o famoso poeta das pombas (“Vai-se a primeira pomba despertada...”). E nunca mais parei com esta mania de ler.
Tenho a impressão, quase certeza, de que esta busca pela literatura era uma maneira de dar vazão ao seu espírito aventureiro, que nunca pôde ser exercido, dadas as condições de vida a que estava ligada: casada, mãe de filhos, e todos os demais compromissos disto decorrentes.
A par disso, ou talvez embalada por isso, ela levou a vida pobre e humilde de uma mulher do interior com estoicismo e dedicação. Criou seus filhos, juntamente com o nosso pai, com rígidos princípios de ética e correção no trato com o semelhante. E os encaminhou à religião, de que até hoje é segura devota. Se, por acaso, algum de nós errou, culpa não lhe cabe. E isto também posso testemunhar a seu favor.
No final da vida de meu pai, cujo falecimento tem três anos, ela se dedicou a ele integralmente, sem abrir mão de um momento sequer do seu cuidado. Tomou para si, com o auxílio de minhas irmãs, o zelo pelos últimos dias do chefe da família que, aos poucos, foi tendo a saúde deteriorada. E, quando ele deu seu último suspiro, lá estava ela ao lado, como a ampará-lo no derradeiro instante. Chorou, como era de se esperar. Mas não se desesperou, porque deposita sua esperança numa vida melhor, tão logo desembarquemos desta experiência terrestre.
Depois deste momento difícil, às vezes tem a emoção aguçada por certas lembranças, mas seu coração está em calma, pois cumpriu o que a consciência sempre lhe ditou, com todas as letras e entonações. Por isso, nunca fugiu àquilo que os cristãos como ela identificam como a cruz que se tem a carregar, como Cristo. E, mesmo se pesada, diz que a sua cruz é leve, seu fardo é suave, porque crê e tem esperança.
Os seus noventa anos nem parecem tantos assim, pois ainda está ativa, trabalhando, lendo seus livros, interessando-se por política, por notícias e novidades que enchem os meios de comunicação. E praticando a vida religiosa de que tanto gosta.
Como há algum tempo perdi a fé, ela se põe a pedir dobrado por mim, porque diz que tenho um compromisso com ela, assim que este jogo for terminado, e passemos a outro plano. Não sei se vou conseguir cumprir, embora, abstraída a descrença, continue praticando todos os ensinamentos de solidariedade, respeito ao próximo e despojamento e modéstia, com que criou todos nós.
Nestes noventa anos, minha mãe pode orgulhar-se de cada gesto seu, por menorzinho que tenha sido, porque olha em volta – aliás, olha para frente – e vê sua existência multiplicada por filhos, netos e bisnetos, todos também orgulhosos dela.
Parabéns, dona Zezé! Parabéns, mamãe!

Dona Zezé, com a imagem de um de seus santos de devoção, na comemoração
junina da família,  em 2015, "O arraiá da Bizezé" (foto do autor).



14 de abril de 2016

NO TEMPO DE GARRINCHA



no domingo à tarde meu pai ouvia futebol
pelas condas curtas da rádio nacional
no velho rádio lancaster
e eu ficava ao lado torcendo pelo botafogo
- tarefa mais que simplória
na época.
hoje a televisão mostra a cores
o logotipo da camisa
as placas de publicidade em torno do gramado
o placar eletrônico
o salário dos jogadores
a empáfia dos cartolas
e um bando de pernas-de-pau
tentando brincar de arte.
naquela época
a fantasia corria atrás da bola
com as pernas tortas.


Imagem em globoesporte.globo.com.

1 de abril de 2016

QUE BARCA?



que barca leva ao outro lado da baía
a sorte de uns e o desespero de outros?
que barca trará de volta os sonhos
e a recompensa pelo trabalho estafante?
que barca conduz pela madrugada insone
a alegria e a ressaca dos noctâmbulos?
que barca amontoa em seu espaço interior
o frio e o calor dos corpos nos fins de tarde?
não é com certeza a da frota carioca
muito menos a barca da cantareira do stbg
nem a prosaica barca da conerj de nome estranho
menos ainda essa moderna da barcas s/a
senão aquela que atravessa os anos
os mares bravios os largos oceanos
varando procelas e cabelos brancos
do primeiro ao último passageiro
como se o tempo fosse um lago azul
manso e suave de poluição inexistente
onde a memória possa passear de hoje para ontem
de ontem para o futuro e assim por diante.



Barca atravessando a baía (foto do autor).