30 de agosto de 2013

A LONGA VIDA DE ANTÔNIO DAS MORTES

Ao nascer, foi desenganado pela parteira e, posteriormente, pelo médico da cidade. Teria uma vida breve. Por isso, na pia batismal, recebeu o ofensivo nome de Antônio das Mortes. Nenhum dos dois acertou. A mãe ficou com remorso, mas já era tarde.

Aos doze anos, despencou-se do pau-d’alho, na serraria do Bebeco, de onde voou cerca de cinco metros até as tábuas aparelhadas. Levantou-se, bateu a serragem que lhe agarrou ao corpo e à roupa, chorou um pouco e foi embora para casa, ali perto, no morro do colégio. Pelo corpo, apenas umas contusões sem maiores consequências. A vizinha maledicente ainda falou um dia esse menino morre, um dia esse desesperado faz a passagem.

Aos dezoito anos, de olho mortiço em bem apessoada morena do fim da rua, consultou cartomante de prestígio nas redondezas sobre suas chances no amor e soube, por uma carta atravessada sobre outra, que sua vida seria curta. Não chegaria a deixar descendentes, que dirá desfrutar de menina nova.

Aos quarenta anos, com vários filhos, dois netos já engatilhados para nascer, venda de secos-e-molhados sortida, caiu da escada ao arrumar latas de biscoito Havaí na última prateleira do armário. Fraturou o cotovelo, sofreu cirurgia, ocasião em que os médicos descobriram haver algo errado com sua saúde. Depois de muitos exames e fuxicações em seu organismo, disseram-lhe para providenciar testamento, que aquilo que eles encontraram nos escondidos dos órgãos e das células não lhe permitiria ver o São João do ano entrante.

Aos sessenta anos, fez festança para calar a boca de todos os vaticinadores de desgraças. Durante a função, recebeu presente estranho, enviado por desconhecido. Dentro de uma caixinha preta, bilhete soturno anunciava mais um infortúnio. Jogou aquilo fora, sem dar maiores importâncias. E tomou um porre de juntar cachorro!

Passaram-se os setenta e os oitenta. Todas as aves agourentas, profetas de desgraças, já estavam embaixo dos sete palmos, desfrutando a paz dos cemitérios, comendo capim pela raiz. Ele ainda comia feijoada, bebia caipirinha, pitava cigarro de fumo de rolo, jogava cunca de cacheta até as desoras e futucava popa de moça bonita desavisada.

Vieram os noventa e ele teimoso, sacudido, contrariando todas as previsões que lhe jogaram na cara desde o nascimento. E, não fosse um tiro certeiro de incerto marido desconfiado, morador da rua do cemitério, romperia os cem anos lépido e fagueiro, porque morreu com a saúde tinindo e trincando, praticamente inoxidável.


Imagem em lugarzinho.com.

27 de agosto de 2013

ÓBVIOS ÓVINIS

Sonhou com discos voadores, seres de outros planetas, viagens em outras dimensões. Acordou sobressaltado pela madrugada, tão nítidas as imagens. Foi à cozinha, tomou um copo d’água, voltou a deitar-se. Sonhou novamente com o mesmo assunto. Agora em outras peripécias. Entendia as mais estranhas formas de comunicação, relacionava-se com os seres mais inusitados. Acordou exausto pela manhã. Contou tudo à mulher, que lhe disse quem mandou você comer feijoada no jantar? É nisso que dá! Não fora a feijoada, ele sabia. Contou para os colegas de trabalho. Foi o filme da tevê, afirmaram. Ele sabia que não era nada disso. O sonho muito nítido, muito detalhado, muito cheio de significados.

Na noite seguinte, tornou a sonhar com os tais seres e máquinas. E assim sucessivamente, durante quase um mês, quando então resolveu procurar uma analista, um ufólogo, um parapsicólogo, um pai de santo, um sensitivo. Cada um deu uma explicação. Nenhuma delas convincente.

Ao cabo de dois meses, sem mais suportar tais sonhos, deu de tomar bolinha para não dormir. As noites em claro começaram, então, a revelar-lhe espectros, sugestões sonoras desconhecidas, sensibilidades imprevistas. Decidiu juntar-se às tribos da noite em boates, cabarés, inferninhos, casas de massagem. Mais e mais captava estímulos especiais. Tinha-se convertido em para-raios humano de todos os medos do desconhecido, de todo o inexplicável.

Em menos de seis meses, seu corpo já emitia uma luminescência fosforescente e todos os objetos vibravam à sua aproximação. Inesperadamente ou não, começou a flutuar e a atravessar paredes e muros, até desfazer-se no ar num facho de luz brilhante que, tal um cometa, sumiu por entre as trevas da noite.

Imagem em seuhistory.com.


24 de agosto de 2013

ANDORINHAS


 
as              nhas                 os              cos
    an      ri          pe       fi        e     tri
        do                    los              lé
chilreavam
                        chilreavam
                                               chilreavam
enquanto o tempo passava desapercebidamente dentro de mim
e na parede branca da capela de santo antônio
o cinema dos meus sonhos
desaparecia com o último fotograma da infância

Voici l'hirondelle porte-bonheur, messagère du printemps, prise en flagrant délit d'agression à la personne.
Imagem sudouest.fr.

21 de agosto de 2013

DESCARRREGANDO A GARRUCHA

Sabe-se lá por que cargas d’água seu Nonato resolvera despachar certo cidadão para o outro mundo. Para tanto, preparou a garrucha cano duplo com carga reforçada pela boca, com direito a chumbinho, chumbão e perdigoto dos grandes. Atochou aquilo tudo com força, cobriu com uma camada de cera de abelha e deixou-a guardada, esperando que o desafeto lhe cruzasse o caminho.

Também não se sabe lá por que outras cargas d'água seu Nonato não desfechou os dois tirambaços em cima do sujeito. Coisas talvez que o tempo se incumba de explicar ou aplacar.

Passado um tempo, necessitando de apurar um dinheirinho, seu Nonato procurou o Argemiro para vender a garrucha. Negócio fechado, garrucha com outro dono, Argemiro foi tentar desmontar as cargas dos canos, no que foi aconselhado pelo amigo Jeremias, ferreiro de muitas artes, a não fazer tal coisa sem ciência e conhecimento, que podia dar revertério e a carga explodir em sua mão. Aceito o conselho, Jeremias se prontificou a detonar os dois petardos na touceira de bambu, nos fundos do seu quintal, perto do valão Liberdade.

Pra lá foi. O estrondo que ecoou pela pequena vila pôde ser ouvido à distância de quase meia légua. E foi só o primeiro. Não saindo o segundo, Argemiro foi correndo à casa do amigo para saber o acontecido. Lá estava Jeremias com a mão ensanguentada de um corte que o cabo de madeira lhe fizera, por se ter partido com o tiro. É grave? Não foi nada, só um cortezinho! Então por que não deu logo o segundo tiro, se não foi nada, Jeremias? É que eu fiquei com medo de que a cavalaria americana baixasse aqui para apurar o fato.


IOmagem em saudadesertaneja.blogspot.com

17 de agosto de 2013

INUMERÁVEL CIDADE (Crônica de Paris IV)


(Para Jane.)


Estou aqui, sentado em minha poltrona, lamentando o que não vi/fiz em Paris, nesta última visita.

Paris é dessas cidades que, tão logo a deixamos, infunde na gente o sentimento da falta, do não feito, do não curtido, daquilo que não se usufruiu. Apesar de você fazer o mais, daí a pouco lhe bate a sensação de que foi o menos. Que faltaram várias coisas. É só começar a rever as fotos, a percorrer com o dedo o mapa da cidade que trouxe da viagem.

Tenho a impressão de que será sempre assim, por mais que a visitemos.

De uma feita, fiquei durante vinte e três dias com meu filho Pedro. Além dos jogos da Copa do Mundo, motivo central da viagem, andamos por vários cantos da cidade, caminhamos longamente por muitas ruas, avenidas e bulevares. Visitamos vários museus. Sentamo-nos para tomar chope e cerveja, a bebida preferida dele, em diversos bares. Também bebemos vinho em alguns outros. Percorremos diversas lojas de cds – música é uma das nossas maiores paixões. E, mesmo assim, não vimos quase nada. É que Paris é uma cidade inumerável, incontável, praticamente infinita de possibilidades.

Há pouco, você, leitor, sabe, Jane e eu voltamos de lá, aonde fomos levar nossa netinha Gabriela, filha do Pedro, para um passeio infantil. A estada só não foi perfeita, porque sobraram intenções. Não conseguimos fazer tudo o que pretendíamos em dez dias. E tudo o que pretendíamos era uma parte pequena do que a cidade oferece, até mesmo para crianças. E Paris tem tão pouca fama de cidade para miúdos. Como disse certa vez Jaguar, no Pasquim: ledo engano ivo!

Paris é cheia de atrações para todas as idades, para todos os gostos. Evidentemente desde que o viajante tenha gostos. E não se limite a um só, como aquele nosso companheiro de pacote da Copa do Mundo ligando do orelhão do hotel em que estávamos. Aos berros, dizia para a mulher: “A cidade é uma merda! Não tem nada para a gente fazer!”. Talvez ele estivesse fazendo coisas inconfessas e quis iludir a esposa a milhares de quilômetros. Ou, na verdade, era uma besta quadrada mesmo, que só enxergava a bola rolando como o fim último da existência.

Por isso é que, agora, estou aqui, sentado em minha poltrona, a refletir sobre tudo o que não fizemos lá desta vez. E já sentindo uma comichão para uma nova viagem, a fim de experimentar várias outras coisas que não fizemos. E, depois, quando voltar, começar a sentir tudo de novo.

Porque Paris é inumerável, incontável, praticamente infinita em possibilidades.
Pont Neuf à noite, Paris (foto do autor)

15 de agosto de 2013

CONSEQUÊNCIAS FUNESTAS

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 19/4/2010.)

Sentiu um repuxo no baixo ventre que ia da hérnia inguinal até a cicatriz da facada do lado esquerdo, logo abaixo da aba da costela. Era feito um corisco rasgando o céu em noite escura de tempestade. Disfarçou o incômodo inventando um passo esquisito para o forró que dançava com a noiva, numa das ruelas da feira nordestina, no Centro Luís Gonzaga de Tradições Nordestinas, em São Cristóvão, naquele sábado de maio. A moça, dançarina emérita desse ritmo, estranhou a invencionice do noivo, mas acompanhou o passo.

- Que invenção é essa, Genival?

Genival, no que ia responder, teve um segundo repuxo, mais pestilento, e se dobrou todo, agora sem disfarçar. Gemeu no ouvido dela:

- Das Dô, segura aí que tenho de ir correndo ao quartinho! – ele ainda com o vocabulário da santa terrinha, que chamava de quartinho a privada.

No recôndito daquele cômodo fétido, de higiene duvidosa e pouco papel de serventia, amaldiçoou a hora em que resolvera destrinchar uma buchada de bode, movida a doses de Serra Grande e Olho D’Água e aspergida por jatos de pimenta-de-bode. Agora não adiantava mais! O estrago já estava feito. E bem que Das Dores o prevenira para não abusar, pois recém-saído de uma escandescência tratada a óleo de rícino. E você atendeu? Nem ele! Bem feito! – pensou ele – Quem manda achar que sei tudo! Não podia ter ouvido Das Dô?

O malefício daquela diarreia se estendeu pelo resto da noite e toda a madrugada, sem deixar o pobre Genival sossegado. Era o mal afamado piriri-gangorra, que faz o padecente ora no vaso, ora na cama, ora na cama, ora no vaso, por um período em que só os ensandecidos intestinos podem saber, eles no comando da vida do depauperado Genival.

Só teve tempo de chegar a casa, sem se borrocar pelas pernas abaixo, porque morava nas imediações do Campo de São Cristóvão, num pequeno quarto atrás da loja em que trabalhava, na rua Bela. Nessa noite, Das Dores não quis ficar com ele, porque não teria proveito de nada, mas providenciou numa farmácia de plantão remédio eficaz para a moléstia. O atendente até recomendou como tomar o medicamento para que o mal fosse sanado o mais depressa possível, mas disse, ainda, que o estragado do bucho tinha de sair todo. Não podia reter o troço lá dentro, para não complicar ainda mais a situação de Genival.

Com o passar das horas, vinda a madrugada fresca, a fornalha intestinal começou a abrandar, de modo que Genival conseguiu pegar no sono por quase uma hora, já clareando o dia, antes de ser despertado por Das Dores, preocupada em saber como o noivo havia passado.

Genival parecia um papel de embrulho amassado. Da sua cor castanha de bugre, herança da avó pataxó, pouco restava: a pele como que irradiava um amarelo fosco um tanto desbotado e os olhos estavam afundados em olheiras azul-petróleo. Das Dores não gostou nada do que viu e logo chamou um táxi para rebocar Genival para a emergência do hospital público mais próximo, onde lhe fizeram uma lavagem intestinal do grosso ao delgado, passando pelas pregas do fiofó. Coisa de luxo, de deixar o ambiente mais limpo que  corredor de nosocômio.

Não fosse essa iniciativa, como diria Das Dores posteriormente, “possa ser que tivesse ficado viúva antes mesmo de botar aliança no dedo esquerdo”, e soltava uma gargalhada frouxa, por se lembrar da cara de Genival, quando adentrou o quarto dele naquela manhã desanuviada de domingo.

Imagem em pontuandoanoticia.blogspot.com. 


12 de agosto de 2013

PEQUENO POEMA PARA UM GRANDE AMOR

(Para meus netinhos.)

Gabriela
Bruno
Francisco
O rumo sem risco atrás da estrela
Da vida inteira
Tal qual Bandeira.
Tanto ela
Quanto eles
Amores profundos
Na vastidão do mundo.



O trio homenageado,  no dia do batizado do menorzinho (foto do avô).



9 de agosto de 2013

COMO ABORTAR UMA CARREIRA PROMISSORA EM DOIS TEMPOS

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 11/4/2010.)
 
 
Brotavam os anos 60. Com meus 15 anos, meu pai pergunta se eu queria aprender a profissão de barbeiro, lá em nossa pequena vila de Carabuçu. Eu, com convicção, disse-lhe: Não! Como resposta, ele foi taxativo: Pode ir, que o Moreninho está esperando pra te ensinar.
Menino obediente, fui, sem discutir. Também era raro menino discutir com o pai nessa época.
Moreninho, infelizmente já falecido, era uma dessas pessoas interessantes que encontramos ao longo da vida: bom papo, vascaíno doente e apaixonado por cinema. Tinha um caderno em que anotava os nomes dos filmes a que assistira e dos seus atores principais, mais uma ou outra observação importante. Naquela altura, lá no interior, não ligávamos para diretores. Quem levava o cinéfilo à sala escura eram os atores. Para marcar essas paixões indelevelmente, atribuiu aos quatro filhos do primeiro casamento – período em que convivi com ele – os seguintes nomes: Ademir, em homenagem ao grande goleador vascaíno; Carmem Lúcia, em homenagem a uma nadadora também do time; Bellini, em homenagem ao zagueiro do Vasco e da Seleção Brasileira de 58; Edilamar, em homenagem à atriz americana Eddy Lammar, uma das suas paixões na tela. Minha memória para por aí, nesses filhos.
Ia eu levando o aprendizado de barbeiro meio a contragosto, apenas porque meu pai assim determinara.
Próximo à barbearia – tudo na vila é próximo –, ficava a farmácia do José Resende, o Zé da Farmácia, onde trabalhava como prático o meu amigo Ronaldo Salles. Estávamos sempre de conversa e, nas horas vagas, ia à farmácia para ler gibis, que ficavam em duas grandes gavetas na parte de baixo das prateleiras de remédios e do lado do freguês. Zé era um aficionado por gibis. E isso era muito bom para os meninos que os podiam ler sem gastar nada, pois Zé não fazia conta dessas coisas.
Aliado ao prazer da leitura dos gibis, vinha em minhas narinas o cheiro gostoso das drogas, dos álcoois e dos éteres. E a farmácia estava sempre limpinha, sempre arrumada, diferentemente do salão de barbeiro com seu chão com cabelos cortados, varrido de vez em quando.
Talvez por tudo isso é que tinha lá desejos de me tornar, também, prático de farmácia e sair aplicando injeções a três por quatro, aviar receitas, fazer curativo nas meninas. Ronaldo, no entanto, sempre me dizia que não era bem assim, as coisas ali eram complicadas.
Até que, certa tarde, mandou-me chamar na barbearia para ver algo. Estava ele nos cuidados de uma bicheira horrorosa na cabeça de Caburé, trabalhador rural que nos fins de semana ia à vila tomar cachaça, e que acabou por envolver-se numa briga com outro bêbado, o Argeu. Na queda, Caburé bateu com a cabeça no meio-fio da rua e agora estava ali com a ferida botando bichos por todos os lados. A visão era tenebrosa. Mas fiquei atento, vendo os cuidados de Ronaldo. Aquilo já balançou um pouco meus planos.
Daí mais uns dias, Ronaldo manda me chamar, novamente, para ver  seu trabalho.
Havia chegado à vila um circo de nome Gran Circo Panamericano, que, dentre outras atrações, trazia animais. Um rapaz, funcionário do circo, meteu-se a urinar próximo à jaula das hienas. Sem pestanejar, uma das feras deu-lhe uma mordida bem lá na área de lazer, que lhe fez um furo de lado a lado. Desesperado, correu à farmácia.
Agora lá estava o Ronaldo no trabalho de curar o pinto do abestalhado circense, passando algodões, mertiolate e outras coisas mais. Virou-se para mim e perguntou:
- Ainda quer trabalhar em farmácia?
Abortei o plano na hora e botei na cabeça que, dali em diante, iria fazer Letras. E eu lá sou bobo?!
 
Lee Dubin, Barbearia (em liveinternet.ru).
 
 


6 de agosto de 2013

SE NÃO MORRER, EU MATO

(Publicado originalmente em Gritos&Bochichos em 23/5/2010.)

Um burburinho se instalou sobre a ponte que liga as duas Bom Jesus, do Norte e do Itabapoana, na fronteira entre os estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro. O motivo da confusão era a tentativa de suicídio por afogamento que Valcírio armava com estardalhaço. Alguns passantes, quando perceberam Valcírio sobre o parapeito da ponte, preste a se atirar nas águas barrentas do Itabapoana, correram a segurá-lo. Desatinado, o homem gritava que queria se matar, que sua vida não valia mais nada, não tinha mais sentido. Tudo porque descobriu que sua mulher, uma morena fornida em carnes, facilitava a vida de uns e outros.

Pego no desaviso com a revelação do amigo de botequim, correu até sua casa, onde pôde constatar a veracidade da fofoca. Albertina estava de acochambração com um vizinho espadaúdo, cuja pele brilhava de suor sob a fraca lâmpada do abajur na mesinha de cabeceira. Saiu correndo do local, as ideias embaralhadas.

Agora estava ele ali, armando a confusão, muito mais para chamar atenção para si. No entanto as pessoas não percebiam que aquilo era mais um pedido de socorro do que o desejo real de se matar.

- Não cometa esse desatino, Valcírio! Tome juízo, homem!

- Me deixem, eu quero morrer! Vou me jogar no rio, quero morrer!

E seguia esse vai-não-vai, com gente chegando, a confusão aumentando rapidamente sobre a ponte, onde já não passava mais nenhum veículo.

Até que chegou Saturnino Malagueta, nordestino cabra da peste que morava do lado capixaba há mais de quinze anos, mas que ainda não deixara de todo uns hábitos da terrinha: andava sempre com uma peixeira de lâmina estreita e comprida na cintura, para qualquer emergência. E foi-se metendo entre o povinho que cercava o desatinado, impedindo-o de pular ponte abaixo. 

Empurra daqui, empurra dali, abria caminho com seu corpão acobreado, para assuntar o ocorrido. Até que chegou no centro dos acontecimentos e viu a cena: Valcírio contido por uns três ou quatro homens, pedindo para deixá-lo morrer.

- Que é que está acontecendo aqui? Qual o motivo desse forrobodó? – perguntou Saturnino.

- É o Valcírio, Saturnino! Tá querendo morrer só porque descobriu que é corno!
Saturnino Malagueta não vacilou: sacou da peixeira de lâmina reluzente, pegou no colarinho do pobre Valcírio e disse para todos ouvirem:

- Ó xente, Valcírio, se você quer morrer, vou ajudar! Vai ser agora! Deixa o homem comigo, gente! – falou para os demais.

- Que é isso, Saturnino?! – gritaram alguns. E partiram para segurar o nordestino, contido com certa dificuldade, já que estava verdadeiramente decidido a ajudar o pobre coitado a partir desta para melhor.

Valcírio só teve tempo de dizer, antes de desmaiar:

- Pelo amor de Deus, Saturnino, não me sangra não! Ai, meu Deus!

E ficou o dito pelo não dito e o suicídio pelo não suicídio. Valcírio aprendeu a suportar a infidelidade da mulher, porque ameaça de suicídio, naquela terra, era quase um princípio de morte. Cruz credo, sô!

Imagem em desciclopedia.org.

4 de agosto de 2013

INCRÍVEL

(Para meus sobrinhos Evelyn e Bráulio.) 

O amor está acima do plausível 
Do inteligível 
Do explicável 
O amor está além do aceitável 
Do previsível 
Daquilo que se concebe humano 
Do concebível 
O amor está além dos limites do aceitável 
Porque é matéria do intangível 
Do inconcebível 
Daquilo que está muito além do que se presume 
Do crível 
O amor está acima daquilo que a vida 
Nos reserva como aceitável 
Porque o amor é incrível

El Greco, Pietà, séc. XVI (em jssgallery.org).