28 de junho de 2011

LE CHAT DE MADAME CORALIE

Vamos combinar: tudo na vida tem seu limite, sua adequação. Mas há algumas pessoas completamente sem noção.
Por exemplo, no condomínio em que mora Madame Coralie - o Tour Eiffel -, no bairro de Icaraí, um vizinho, dois andares abaixo, na mesma coluna, resolveu comprar um papagaio e começou a ensiná-lo a falar.
Até aí nada demais, não fosse esse vizinho, sobre ser antipático, nojento e esquisito, também gago e desbocado.
Pois então! De cada frase que, com dificuldades, sai da boca cheia de dentes daquela execrável criatura, metade se faz de palavrões e impropérios. Todos com alguma sílaba repetida, como é comum nesses casos.
Agora, não bastasse ficar ouvindo, através da parte interna do prédio, a besta do vizinho vociferando, os moradores de fundos têm de aguentar essa coitada ave, mal educada na vida, a repetir o comportamento condenável do seu dono. E é só a mínima contrariedade, para que ela despeje no ar o lixo vocabular que sai de sua garganta de taquara rachada - o poleiro colocado sobre o parapeito da área de serviço:
- Cacacete! Memerda!
Por isso é que, estribada na moral e nos bons costumes e no desejo de tranquilidade a presidir o convívio, Madame Coralie, francesa dos quatro brioches e outros tantos croissants, viu-se obrigada a chamar o Ibama, para dar um fim àquele despautério.
Além deste problema, quase sempre tinha de suportar ainda o alto volume do rock do apartamento 1006, imediatamente abaixo do seu, onde moravam cinco rapazes. Vida de condomínio é mesmo um incômodo!
Certo dia mesmo, não aguentando mais o hard rock de Machine head, do Deep Purple, tocado lá nas alturas, soou a campainha e, tão logo a porta lhe foi aberta, invadiu o recinto, dirigiu-se à parafernália eletrônica de onde saía aquela massa sonora ensurdecedora, girou o botão até que o volume estivesse baixo e disse para o boquiaberto jovem, com o sotaque de Brigitte Bardot já entrada em anos:
- É assim que se ouve musique civilizadamente!
Deu um tour sobre suas chinelas de crochê, os cabelos amarados num coque ralo, e voltou ao seu apartamento, no décimo primeiro andar.
Justifica-se, assim, que não tivesse o mínimo constrangimento em acionar o Ibama, depois da recusa da delegacia do bairro, sob a alegação de que ave dizer palavrões não era crime capitulado no Código Penal, pelo que eles, infelizmente, não poderiam fazer nada, "e passe bem".
Quando ainda tentou argumentar com o policial, teve como resposta sugestão mal-educada que refletia também cultura de fundo de botequim do homem da lei:
- Isso aqui é Brasil, minha senhora! Por que não volta para a Espanha?
Depois de algum tempo, tornou a entrar em contato com o Ibama e soube que, mais uma vez, os funcionários estavam em greve, sem perspectiva de retorno tão cedo.
Irritada e mais isolada que Maria Antonieta durante a Revolução, resolveu passar a solução do problema para Robespierre, seu gato de estimação, de comportamento deletério.
Vestiu um colete de frio no bichano, amarrou-lhe um cordel grosso ao redor e ficou aguardando a saída de casa do vizinho, sempre indicada pela despedida do papagaio:
- Teté lologo, lolouro viviado!
- Teté lologo, Sansandro viviado! Cucurrupaco!
Pelo televisor, através do circuito interno, assegurou-se da saída dele. Pegou o gato amarrado pelo meio e protegido pelo colete e o desceu, através do cordel, até que ele atingisse o andar do papagaio.
A carnificina empreendida no 906, com os gritos da desesperada ave atacada por Robespierre, não teve testemunhas àquela hora da tarde. Apenas alguns ouviram o barulho; ninguém viu!  
Retrato falado de Robespierre (zazzle.pt)
O gato, rebocado pelo cordel, voltou para casa com a boca cheia de penas verdes. Madame Coralie limpou a boca e os pelos do bichano e o trancou no quarto para que se acalmasse. Mais tarde mimoseou o felino carrasco com leite morno em prato de ágate, decorado com desenhos da fauna brasileira.
O regime do terror tinha sido implantado no Tour Eiffel. O próximo não se engraçasse. Robespierre estava com o alvará dos jacobinos para agir.

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